7 de março de 2021

TITUBA: a bruxa que era muito maior que Salem


 A história das bruxas de Salem nunca me atraiu. Talvez por eu saber, desde que tive contato com ela, que se tratava de uma história de mentiras, manipulações e política puritana. Então, sinceramente, eu não gostava. Não por falta de interesse, mas porque me revoltava. Me revolta até hoje, para falar a verdade. Na minha própria contradição, me incomodo com o caráter mercantil que Salem ganhou, capitalizando tudo que é de bruxa, quando o que temos ali é uma história de dor e opressão, mas, ao mesmo tempo, a atmosfera bruxística me encanta e me fascina o bastante para eu vive-la intensamente. Refletindo sobre tudo isso, entendi um pouco do que sinto – mas ainda preciso de mais reflexão, confesso. E foi a bruxa negra, indígena ou mestiça de Salem que, com a sua poderosa magia, me mostrou... E é dela que vamos falar neste texto.

Tituba Indian (Tituba Índia) era o nome pelo qual era conhecida, porque ela parece ter sido casada com um homem escravizado junto dela, em Barbados; Seu nome era John Indian (João Índio). No entanto, há registros de que Tituba negava ser casada com ele.

Como mulher escravizada por Samuel Parris, Tituba cuidava da casa, das crianças, dos animais, dentre muitas tarefas. Sabemos que, ela foi a primeira pessoa a ser interrogada por ocasião das investigações sobre bruxaria, em 1692. Os registros mostram uma história de mentiras, histeria e superstição. E a historiografia não mostra, escancara, a face do preconceito e racismo. Vamos lá...

Pelos registros, sabemos que a filha de Parris e outras amigas começaram a adoecer, sem uma razão aparente. Bem, pelo menos não que o médico da família pudesse diagnosticar. Então, ele alegou que, sem saber a causa do adoecimento, elas só podiam estar sob o feitiço de alguma bruxa. Naquela altura, Salem (e não só Salem) já era um enorme celeiro de superstições e a sanha de perseguição a bruxas era lugar comum. Tanto é que, segundo registros históricos, foi uma vizinha dos Parris, Mary Sibley, que teria ensinado Tituba a fazer um “bolo de bruxa”, uma espécie de bolo feito com a urina das meninas que, quando dado a um cachorro, esse revelaria quem era a bruxa. Mary Sibley não fora condenada a nada, exceto a um afastamento temporário da congregação, já que era uma figura importante daquela sociedade, além, obviamente, de ser uma pessoa branca.

Já Tituba...

Tituba foi presa e interrogada não só por esse fato, mas também por ter sido acusada por Betty Parris e Abigail Williams que, à altura, estavam apenas começando o enorme trabalho de manipulação e mentiras que culminou na prisão e morte de inúmeras pessoas. As três primeiras pessoas acusadas por bruxaria foram três mulheres, claro, que não se encaixavam nos moldes puritanos da Vila de Salem. Uma delas, por óbvio, foi Tituba, que era conhecida pelas histórias de sua terra longínqua e, segundo registros, ela seria conhecida por utilizar plantas para cura e outros objetivos, tendo, inclusive, muitas vezes, tratado as crianças da Vila, inclusive as de Parris, com seus remédios naturais. É claro que isso foi usado como prova de que Tituba era uma bruxa, na concepção diabólica criada à época.

Mas não foi só isso.

Existem dúvidas sobre a etnia de Tituba, não sabendo se ela seria nativo americana, se seria africana, se seria mestiça. E isso é um ponto importante em toda a história de Tituba. Ao analisar uma história, é bom sempre atentarmos ao que não é dito, porque é exatamente naquilo que não é dito que muita verdade pode ser encontrada.

Tituba não foi apenas apagada da história. Sequer houve interesse em registrar sua origem, sua etnia e, à medida em que os anos passavam, que os séculos passavam, ora Tituba era tida como indígena, ora como negra, a depender do contexto histórico. A ausência de um registro sólido sobre a etnia de Tituba é mais uma prova histórica de menosprezo, opressão e dominação de pessoas brancas sobre pessoas negras e indígenas. A invisibilidade de Tituba me parece proposital. Aliás, o desfecho da história dela em Salem corrobora e prova o racismo profundo de quem registrou a história. E digo sem medo de errar, porque notem a força de Tituba, notem a inteligência dessa mulher por ocasião de seu julgamento. Tituba, perspicaz e perceptiva ao movimento de superstição e histeria que ocorria em Salem, ao ser interrogada em julgamento, confessa ser uma bruxa, mas não por que queria ser uma bruxa. Tituba invoca argumentos muito consistentes à mente asquerosa de seus algozes. Ela admite ser bruxa por ser mulher e escravizada. Ora, uma mulher é mais fraca e muito mais facilmente seduzida pelo Diabo! Além disso, ela é uma escrava e está habituada a receber ordens sem questionar! Então, ela só fez o que sabia fazer, sendo uma mulher escrava, ela obedeceu. E foi isso que salvou sua vida, já que, convencidos de que aquele ser fraco e inferior, só poderia sucumbir às artimanhas do Diabo, já que era uma mulher, já que era uma mulher não branca. Tituba permaneceu presa por 15 meses, sem que Parris pagasse para retirá-la da prisão. Então, um dia, ela é comprada por outro homem e nada mais se sabe dela.

É o que temos.

E, embora a gente deseje muito mais, é suficiente para compreendermos a força, a inteligência de Tituba. Como uma mulher escravizada não branca, portanto, sem recursos, sem proteção, conseguiu sair viva nessa circunstância? Foi a magia de Tituba que a salvou? Definitivamente sim. Tituba é definitivamente uma bruxa e devemos honrá-la em nossos festivais dos mortos, como uma grande ancestral de todas as bruxas. Tituba é uma bruxa por que não só de feitiços se vive. Ser bruxa é sobre ser resistência, é sobre ser forte. E ser uma bruxa não branca é, além de tudo isso, sobre ser sobrevivente.

As imagens que vocês estão vendo, em desenho, são do século XIX, feitas por John W. Ehninger, que retratou Tituba com traços que me lembram muito os nativos norte americanos. Ehninger talvez tenha sido influenciado pela presença dos povos que viviam em Salem, à época de Tituba. É sabido que os colonos estavam em guerra contra os indígenas da região, especialmente as etnias Wampanoag, Nipmuck, Pocumtuck e Narragansett. Segundo avaliação de Sherri V. Cummings, em seu artigo Indian, Mixed, or African: The Metamorphosis of Tituba, Woman, Slave and Witch of Salem — A Historiographical Examination, a falta de interesse em registrar a etnia de Tituba é clara e, infelizmente, lugar comum na época, por isso, é possível que ela tenha sido uma pessoa mestiça. Acrescento que ela pode ter sido uma mulher com traços muitos familiares para nós, já que temos uma mistura muito comum de muitos povos. Olhar para nós mesmos é olhar a história de oprimidos e opressores que se mesclam em nosso DNA. Sim, somos a soma de muitas histórias de oprimidos e opressores. Temos todos eles dentro de nós.

Uma dica muito bonita de leitura, que traz essa reflexão, já que apresenta Tituba como tendo nascida do estupro de um oficial inglês sofrido por sua mãe, africana, é o romance histórico “Eu, Tituba, de Maryse Condé”. O livro é narrado pela própria protagonista, e mescla elementos históricos e ficcionais, num recontar maravilhoso, que nos apresenta Tituba em muitas épocas de sua vida, proporcionando um sentido de representatividade muito importante. Recomendo.

 Na minha imaginação, Tituba jovem tem a cara de uma bruxa muito forte e poderosa, de nome Obsidiyana, por isso eu pedi e usei uma imagem dela para a representar Tituba, a verdadeiramente maior bruxa de Salem. Conheçam o trabalho da @obsidiyana, no insta, vocês vão gostar!

 Beijos,

Lua Serena

 

 

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