Quando iniciei meu caminho na Arte, mal sabia que isso iria me levar por inúmeros caminhos do saber!
Acho que dentre as poucas coisas que aprendi, uma das mais importantes foi que se queremos, de fato, entender o que praticamos, devemos beber de inúmeras fontes do saber... Matemática, Geografia, Filosofia, Arte, Antropologia, Geologia, História, e por aí vai... Sem dúvida, quando nos damos conta disso, entendemos por que é que vamos à escola. E por que é que na Antiguidade existiam as escolas de mistérios. Nosso estudar deriva delas. Ou seja, nada está dissociado, nossa vida material não é separada de nossa vida espiritual... Para constatar isso, basta que olhemos as coisas sob outro prisma, não é mesmo?!
Enfim, estudar de verdade aquilo que praticamos nos levará por muitos caminhos do saber. Um deles, foco deste nosso estudo agora, é a História.
As evidências históricas do culto à Deusa foi o tema de uma palestra eu que tive oportunidade de ministrar em três ocasiões diferentes. Cada uma dessas ocasiões foi especial para mim, atraiu diferentes pessoas, todas interessadas em descobrir as origens do culto ao Feminino. Houve, de fato, um culto pré-histórico ao Feminino, que teria sobrevivido até os dias atuais? Acredito que muitos se perguntam a respeito disso. Bem, assim como tantos outros assuntos relacionados com a Bruxaria, vocês perceberão que não há uma resposta sem oposições.
Vejam que um estudo aprofundado sobre este tema é vasto e daria uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado. Então resolvi desenvolver esse tema enfocando uma pequena parcela do assunto. Mais ou menos o que eu fiz quando ministrei a palestra.
Primeiro vamos entender uma questão conceitual.
Quando falo de evidências do culto à Deusa, entendam “Deusa” como sinônimo de “sagrado feminino”, que é a sacralidade do sexo feminino. Em outras palavras, quando eu digo “Deusa”, não estou afirmando que havia um culto idêntico espalhado pelo mundo que tinha como foco de reverência uma Deusa única. Mesmo por que, eu não acredito nisso. Eu acredito que as evidências apontam para uma reverência ao sagrado feminino, ao corpo feminino reverenciado pela sua natureza geradora. E que essa ideia pode ou não ter sido compreendida como um microcosmo. Em outras palavras, eu acredito que o feminino foi reverenciado como sagrado e que pode ter partido daí a ideia de uma Deusa, o macroscosmo. Mas não significa que nós, lá no paleolítico, por exemplo, tínhamos uma noção de Deusa, ou de religião como temos hoje. Acho que é preciso que a gente tenha isso claro em mente para podermos discutir o assunto. Para mais informações sobre isso, procurem ler sobre proto-religião, religião primal, religião natural, dentre outros termos, que são conceitos sobre o tipo de religiosidade que se estabeleceu entre os seres humanos da pré-história.
Pois bem, a partir do século XIX, essa religião primal foi alvo de inúmeros estudos. Um dos que se debruçaram sobre o assunto, foi Johann Bachofen, um jurista e antropólogo suíço, que defendeu a existência de um Direito Matrilinear, que ele chamou de “Direito-Mãe”.
Bachofen traçou inúmeros paralelos sobre esse direito e as religiões primais da humanidade, afirmando que essa primeira manifestação de religiosidade humana era focada na mulher. Seus estudos foram criticados por muitos, mas também foram a base de estudos de muitos outros.
Bachofen defendeu essa tese em razão de inúmeras estatuetas encontradas na Europa e em outras localidades do nosso mundo vasto mundo. Essas estatuetas ficaram conhecidas como as “Vênus Esteatopígicas”, ou simplesmente, “As Vênus”, que são figuras femininas, em geral com as partes íntimas exageradamente grandes.
A primeira foi descoberta no século XIX pelo Marquês de Vibraye, na França. A partir disso, inúmeras outras foram encontradas. A mais famosa, inclusive entre nós pagãos, é a Vênus de Willendorf. Ela foi encontrada em 1908 no vale do Danúbio, na Áustria. A mais antiga dessas “senhoras vênus” – pelo menos na Europa – é a Vênus de Hohle Fels, descoberta em 2008, na Alemanha.
Pois bem, os anos foram passando e enquanto as Vênus surgiam em mais e mais números, muitos outros estudiosos seguiram os passos de Bachofen, formulando teses sobre o signo, significado e simbologia dessas estatuetas e também sobre o foco religioso dos povos do passado. Muitos foram os que defenderam a existência de civilizações matriarcais, matrifocais e matrilineares.
Antes de avançarmos, vale a pena entendermos o que cada um desses termos significa.
MATRIARCAL: Forma de estrutura social em que todo poder está com as mulheres, seja esse poder, político ou espiritual. Se bem que, é importante dizer, em civilizações antigas o poder político e social muitas vezes não era apartado do poder espiritual. O Matriarcado se caracteriza pela supremacia feminina. Podemos, inclusive, falar em dominação e opressão. Quando falamos de Matriarcado, o sentido é o mesmo que Patriarcado, só que no primeiro caso, o foco dominante é feminino.
MATRIFOCAL: Sistema social com enfoque no feminino, sem que haja dominação. Nesse caso, o enfoque é feminino, mas não há dominação. Eu costumo dizer que nossa sociedade hoje é patrifocal, uma suavização do patriarcal de um tempo atrás. Ou seja, hoje o mundo é bastante focado no masculino, mas não significa que o universo feminino seja desconsiderado, nem significa que as “coisas de mulher” sejam tão ridicularizadas como eram no passado. Mas ainda há um foco no homem. Espera-se que as pessoas tenham muito mais posturas masculinas que femininas. Eu percebo esse patrifocal muito forte também quando assisto a alguns filmes. Se um filme tem como personagem principal um homem e sua vida (profissional, relacionamento, etc), esse filme é aceito normalmente por homens e mulher. Ou seja, homens ou mulheres, tanto faz, possivelmente se identificarão com o personagem ou sua história, postura, etc... Mas se o personagem é feminino e a história fala de sua vida... em regra ele é classificado como um filme feminino, para mulheres... Enfim, uma visão particular, mas que ilustra o que vem a ser um patrifocal, ou um matrifocal quando falamos do foco feminino.
MATRILINEAR: Trata, em termos gerais, de linhagem sanguínea derivada da mãe, sobre Direitos dos filhos nascidos de determinada mãe. Um exemplo moderno de matrilinearidade é a sucessão de sobrenomes na Espanha. Até hoje, o sobrenome que é passado de uma geração a outra, é o feminino.
Pois muito bem, muitos defenderam a existência de sociedades cujo feminino era dominante ou focado. Uma dessas civilizações foi a Civilização Minóica ou Minoana. Esse nome foi cunhado por Arthur Evans, antropólogo não profissional que descobriu a existência de uma civilização extremamente desenvolvida na região das ilhas gregas do mar egeu. Dentre essas ilhas, a mais conhecida era e é Creta, onde, inclusive, Evans descobriu o Palácio de Cnossos.
O nome da civilização guarda relação com o nome de seu rei, Minos. E segundo as descobertas e conclusões de Evans, a mulher nessa sociedade detinha poder e status, e eram as condutoras dos ritos iniciáticos da religião minoica. Não é possível saber tudo sobre essa civilização, mas sabemos que muitos deuses gregos são de origem minoica, como por exemplo, Rhea ou Réia, a mãe comum de todos os seres. E isso não foi Evans quem disse. Evans defendeu a proeminência política, social e religiosa da mulher naquela civilização. Ele não disse que eles adoram a uma única Deusa, até mesmo por que as escavações na região e outras referências histórias demonstram que a religião minoica era politeísta. Contudo, há também muitas referências a uma Deusa Mãe Minoica, mãe de todos os outros Deuses...
De todo modo, Evans também foi extremamente criticado por suas conclusões acerca da posição feminina na sociedade minoica. Suas conclusões foram aclamadas e criticadas, mas seu legado é referência até hoje.
Outra figura importante para estudarmos é Marija Gimbutas, antropóloga lituana que, Influenciada pelas descobertas, principalmente de James Mellaart no sítio arqueológico de Çatalhouyk, na Turquia, estudou os artefatos neolíticos encontrados até a década de 60, em vasta área (da Rússia a Itália), e concluiu que aquelas sociedades tinham uma raiz religiosa matriz: a figura de uma Deusa Mãe.
Marija Gimbutas apontou diferenças entre a religiosidade primal da Europa, focada na figura feminina da Divindade e na mulher, e entre a religiosidade com um modelo Indo-Europeu patriarcal. Tendo esse último suplantado o primeiro. De acordo com esta interpretação, as sociedades ginecocráticas, dominadas por mulheres, eram pacíficas e igualitárias, enquanto as sociedades androcráticas, ou dominadas pelos homens (que Marija chamou de Kurgans), por outro lado, teriam invadido a Europa e imposto sobre os nativos o domínio dos homens guerreiros. Essa teoria foi extremamente criticada por uns, assim como aceita por outros. Um de seus críticos foi o arqueólogo britânico Colin Renfrew.
Colin Renfrew sempre se pôs à teoria de que os Kurgans teriam migrado e dominado povos do Neolítico, trazendo a supremacia masculina. Sua teoria é de que os povos indo-europeus teriam se expandido a partir da Anatólia, parte da atual Turquia. Esse ramo de estudo se mescla com o estudo da Linguística, e há muitas controvérsias tanto na teoria de Marija, quanto na teoria de Renfrew.
A teoria dos Kurgans foi uma das teorias elaboradas, por aqueles que defenderam um culto ao feminino, para a extinção das sociedades focadas nas mulheres ou até mesmo igualitárias dos gêneros, dando lugar às primeiras ideias de patriarcado. Outras teorias sugerem uma mudança gradual do enfoque de gênero baseado na força física, no fato da mulher engravidar... há também quem afirme que o matriarcal deu lugar ao patriarcal exatamente em razão da opressão das mulheres nos homens. Enfim, especulações, teses variadas...
Tenho estudado a cultura minoica há algum tempo e naquela sociedade em particular – que para mim caracterizava-se por ser matrifocal – eu creio que o patriarcal tomou lugar quando houve a grande explosão do vulcão na ilha de Thera.
Thera, onde hoje está a ilha de Santorini, era o coração religioso da civilização minoica. Para esse povo, as mulheres exerciam poder espiritual. Ou seja, assuntos espirituais eram domínios femininos, mas admitiam alguns homens. Já assuntos comerciais eram domínios masculinos, embora também houvesse abertura às mulheres. A política, naquela época nem um pouco apartada das questões religiosas, era exercida por homens e mulheres.
Quem detinha o poder de falar com os Deuses eram as sacerdotisas, que durante séculos desempenharam corretamente esse papel, aplacando a fúria dos Deuses por meio de rituais e sacrifícios. No entanto, as sacerdotisas não conseguiram impedir que o vulcão em Thera entrasse em atividade e provocasse o fim da civilização minoica... então podemos imaginar como foram encaradas essas sacerdotisas. Essa erupção foi extremamente impactante na sociedade minoica. Tudo mudou ainda mais com a invasão dos micenos, povo de orientação patriarcal. A mitologia grega como a conhecemos é um misto do panteão minoico e miceno. Eu acredito que a queda da força e respeito ao feminino na Grécia, tanto socialmente falando, quanto espiritualmente falando, foi bastante influenciada pelo evento em Thera. Mas é uma conclusão minha que precisa de mais pesquisa para poder se sustentar. Quem sabe um dia...
Bem, toda essa discussão sobre como e por que haveria ocorrido essa mudança de enfoque de gênero nas civilizações antigas somente tem sentido se considerarmos a premissa de que, de fato, existiram sociedades matriarcais, matrifocais, matrilineares, ou igualitárias.
Contudo, há controvérsias, claro. Muitos foram os que criticaram essas ideias que surgiram com a descoberta das Vênus.
Um dos críticos, o antropólogo britânico Peter Ucko, publicou, na década de 1960, inúmeros estudos questionando o método de análise e conclusão das Vênus, que chamou de “figurinhas femininas”. Para ele, os defensores da ideia matriarcal sofriam da “Síndrome da Falsa Memória”.
Em 2000, Cynthia Eller publicou o polêmico livro “O Mito da Deusa”, rebatendo as afirmações de Marija Gimbutas sobre a condição feminina no passado. Para ela, o fato de ter havido um culto à Deusa, não significa que a mulher na sociedade possuía status de privilégio ou até mesmo de igualdade com o masculino.
Alguns arqueólogos e estudiosos chegaram a dizer que o fato de haver um culto ao corpo feminino não significa necessariamente que havia um culto à Deusa. Em outras palavras, o fato de as Vênus existirem não significaria que elas eram objetos ritualísticos, nem que havia uma visão feminina de Deus, ou uma religiosidade focada na mulher. Outra explicação dada por alguns arqueólogos e antropólogos, como Paul Mellars, era de que as Vênus eram a primeira forma de pornografia que a humanidade conheceu, reafirmando o corpo feminino não como algo a ser reverenciado como sagrado e portanto divino, mas como objeto de desejo e prazer masculino.
É importante entendermos que ideias, teses, teorias, são aceitas, depois são desacreditadas, depois são aceitas novamente... é sempre assim no mundo acadêmico.
Em reportagem da revista Galileu sobre as evidências histórias das sociedades matriarcais e ao culto à deusa, em abril de 2005, a escritora brasileira Rose Marie Muraro, referência do feminismo no Brasil e autora de um livro sobre a sociedade matrifocal, sabiamente afirmou: "Agora as opiniões se inclinam num sentido, mas já apontaram na direção oposta. É assim que funciona o debate científico.”
Timothy Taylor, arqueólogo britânico e crítico da visão matriarcal das sociedades do passado, admite que hoje não há consenso sobre o que as Vênus significam. Em outras palavras, embora ele afirme que a teoria de Gimbutas, por exemplo, sobre as sociedades matriarcais pacíficas, seja seguida de forma minoritária pelos estudiosos acadêmicos do assunto, outras evidências deixam margem para dúvidas, não havendo como afirmar categoricamente X ou Y.
De qualquer maneira, gosto muito de lembrar das palavras de Erich Neumann, psicólogo e filósofo alemão, que defendeu fortemente as raízes históricas da Deusa, tratando de ligar fatos históricos e descobertas arqueológicas com conceitos psicológicos. Para ele, a Deusa jamais se perdeu ou se perderá, pois está na psique humana.
Ou seja, essa figura está presente no interior, íntimo da natureza humana, e por isso teorias que abordam a existência de uma Deusa sempre renasce. Alguns se ligam mais à ideia de uma Deusa, outros menos... Mas de qualquer modo, tem a ver com o sagrado de cada um e sendo de cada um, há que se ter respeito. Coisa que algumas pessoas não tem... infelizmente.
Um beijo a todos,
Lua Serena
Um comentário:
Oi,Lua.
Você começou o seu texto falando, com muita propriedade, sobre as inúmeras fontes de saber com as quais nos deparamos quando decidimos buscar a Deusa. Marija Gimbutas foi uma cientista que desde sempre soube que a arqueologia convencional, ou seja, aquela que apenas data e cataloga artefatos, não conseguiria dar as respostas que ela buscava quando encontrou inúmeras estatuetas de mulheres nas suas escavações. Por isso ela desenvolveu um método de pesquisa ao qual ela chamou "arqueomitologia", que aliava os conhecimentos históricos e arqueológicos á mitologia e, principalmente, á linguística dos povos que criaram tais estatuetas. Foi assim que ela conseguiu compreender a Ideologia dos povos pré-Indo-Europeus, que cultuavam a Deusa-Mãe em suas diversas formas. Marija conseguiu desvendar o modo de vida dos povos pré-históricos com seu método interdisciplinar, que incluia também pesquisas genéticas, pesquisas estas que apoiavam a Hipótese Kurgan criada por ela. Dessa forma, a tese de que os povos neolíticos viviam em sociedades pacíficas e igualitárias, que cultuavam a Deusa e viviam em harmonia com as forças da Natureza, está baseada em extensas pesquisas, de diversos campos da ciência, e são plenamente aceitáveis para os estudiosos mais cuidadosos. Aliás, é importante que se diga que, no trabalho de Marija Gimbutas, não há nenhuma referência sobre o domínio das mulheres nessas sociedades. Ela fala de sociedades igualitárias, onde havia um equilíbrio entre o poder masculino e o feminino. As críticas ao trabalho de Marija Gimbutas vem daqueles que não compreenderam seu método de trabalho. Há aqueles que nem mesmo qualificam a arqueomitologia como um método científico. Mas, no meu entendimento, quando se trata desse período da história em que as evidências são tão escassas, o método convencional de investigação científica é pobre. Somente juntando o conhecimento científico com um saber mais antigo, o saber mitológico, é que podemos ter uma visão mais clara, por entre as brumas do tempo. De qualquer forma, o trabalho de Marija Gimbutas é de extrema importância para aqueles que desejam conhecer a Deusa e as origens do seu culto. É realmente uma pena que nenhum dos seus brilhantes livros tenham sido traduzidos para o português. Quem sabe um dia alguém supra essa lacuna...
Abraços,
Fabiola
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