14 de março de 2021

Ticê: a feiticeira sem medo





Nemarangatuete! Orému camiarú!

(Seja digna! Feitiço nosso!)

Encontrei essa saudação em uma das poucas fontes sobre Ticê, em um artigo sobre sagrado feminino indígena da etnia Xapuri, no site cujo link segue ao final do texto. 
Quando sentei para escrever sobre Ticê, me deparei com tristeza, porém, infelizmente, sem espanto do quão pouco temos sobre ela (e o que temos é mais do mesmo). Um misto de revolta e tristeza me tomou de assalto com a ausência de registros... Ticê, como muitas deusas, seres e espíritos femininos da terra que hoje chamamos de Brasil, foi praticamente aniquilada da nossa história. Vemos aqui a força da mão do patriarcado e da colonização que ou deturpou ou dizimou muitas figuras femininas de nossa história original. Se temos pouco de deuses e espíritos dos povos donos desta terra, temos menos ainda de deusas e espíritos femininos... ainda mais quando os raios de atuação dessa deusa são a magia, o conhecimento das plantas que, tenho certeza absoluta, não eram apenas as venenosas e mortais, já que encontramos, no decorrer da história da humanidade a mulher como portadora de saberes ancestrais de ervas, tanto as que curam, quanto as que matam, dentre outros aspectos ditos “sombrios”. Então, percebo que ao encontrarmos registros de que ela é uma feiticeira guerreira, conhecedora de venenos, só me faz ter mais certeza de que Ticê, junto de outras grandes deusas feiticeiras, curandeiras e guerreiras, sem dúvida alguma, é parte do Espírito Ancestral de todas as erveiras, parteiras e curandeiras da terra que hoje chamamos Brasil. E se hoje conhecemos algum chá que a avó ou avô aprendeu com alguém que aprendeu com alguém e aprendeu com alguém, devemos a Ticê, a feiticeira sem medo e outras tantas feiticeiras desta terra.
Tentaram apagar Ticê, não conseguiram. Tentaram demonizar Ticê, não conseguiram. Ticê vive em cada mulher e cada homem que nasceu nesta terra, cada mulher e cada homem que bebeu um chá de ervas indicado por alguém. E acima de tudo isso Ticê vive em cada mulher indígena desta terra! Porque Ticê é uma feiticeira guerreira... porque todas as mulheres indígenas deste país são Ticê em força, em magia, em beleza e em guerra. E não adianta... Podem tentar apagar, dizimar, destruir, deturpar... Essa força é a própria força da mata, da Terra, do profundo da Terra, reino sagrado da feiticeira sem medo. 
Sim, tentaram destruir Ticê, mas a sua força e a sua magia são maiores. E o pouco que sabemos dela nos dá uma ideia de seu imenso poder. 
Salve, Sagrada Ticê, feiticeira sem medo! 
Que seu poder e magia habite nossos corações e nos proteja e empodere. E sejam todas as mulheres indígenas deste país lembradas e honradas. 
Eu me sentei para escrever, mas só pude desabafar sobre a ausência de mitos, de histórias, de fontes... Então, me lembrei sobre quem eu queria escrever: sobre uma deusa indígena da magia, do submundo, guerreira, que conhece plantas venenosas, portanto, senhora da morte. E isso me fez lembrar Morrigan, a grande feiticeira guerreira celta também demonizada. 
Isso me fez lembrar das anciãs Guarani Kaiowá, da aldeia Taquaperi, que foram torturadas por pastores evangélicos no Mato Grosso do Sul, acusadas de bruxaria, em 2019.
Isso me fez lembrar da mulher indígena de 29 anos, espancada e acusada de bruxaria, na aldeia Amambaí, também no Mato Grosso do Sul. 
Isso me fez lembrar de um pseudo jornalista, nas eleições de 2018, numa rádio hedionda, criticando a candidatura do Guilherme Boulos. Ele usou o fato da vice do candidato ser indígena como se isso fosse algo muito ruim ou motivo de chacota. Ele comentou com voz de nojo “Uma indígena como vice?! Uma indígena?!” Ninguém disse absolutamente nada. Eu não li posts militantes de internet. Ninguém fez uma campanha contra a fala dele, ninguém foi às ruas, ninguém fez textão... passou quase como se não tivesse existido... E, para mim, o que era claro ficou cristalino: para ele e para tantos, ela não existe, ela não pode existir! Para ele e para tantos, Sônias Guajajaras são absolutamente nada, tão insignificantes que é possível falar na rádio o que jamais se falaria de uma mulher branca ou negra, porque haveria comoção e revolta. Mas, pela indígena... ninguém falou nada.
Então, sentar aqui para escrever sobre Ticê me trouxe uma grande tristeza e revolta. Eu não encontrei registros dela... mas encontrei muitos registros de violência contra indígenas. E eu vou deixar essa revolta aqui... como um registro no vazio de informações sobre essa deusa maravilhosa e no oceano de registros de agressões. Reflitam sobre isso e sobre as agressões não registradas também... E abaixo, deixo com você um texto belíssimo que meu amor, Elfo, escreveu. Espero que gostem. 
Quem dá rosto à Ticê é a Mari, a primeira mulher a me falar sobre essa deusa. Ela, minha filha espiritual, foi quem me apresentou para essa divina presença. E eu sou imensamente grata por isso. Não tenho quaisquer registros de imagem de Ticê, apenas desenhos bonitos, porém, infantilizados... então, eu queria colocar a imagem de grandes mulheres indígenas desse lugar que chamamos Brasil, mas não teria como usar a imagem delas, sem prévia autorização. Então, cito seus nomes, para que vocês busquem saber sobre elas. E se tiverem outros nomes, coloquem nos comentários: Fernanda Kaingang, Daiara Figueroa Yé´pá Mahsã, Sônia Guajajara, Ana Roberta Uglõ Patté, Katu Mirim, Joênia Wapichana Aline Rochedo Pachamama, Ara Mirim Sonia Barbosa, Ará poty mirim Rosângela Barbosa, Azelene Kaingang, Célia Xakriabá, Djuena Tikuna, Francisca dos Anjos, Iracema Rã-Nga Nascimento, Jozileia Daniza Kaingang, Kerexu Yxapyry Eunice Antunes, Kaiulu Rodarte Kamaiurá, Márcia Mura, Maria Eva Canoé, Maria Helena Gavião, Laura Parintintin, Mariane Chaves, Mikelly Priprá, Nanjá Schirlei da Rocha, Nara Baré, Pará Mirim Claúdia Benite, Pará Márcia Macena, Pietra Dolamita Kauwá Apurinã, Renata Machado Tupinambá, Tsitsina Xavante, Tuire Kapran-Krere, Valdelice Veron, Walderes Xokleng, Watatakalu Yawalapiti.
Era uma vez a maior entre todas as bruxas que já pisaram nas terras de Pindorama, líder amada e temida que expandiu seu domínio para além dos limites do seu povo e ganhou renome em todo litoral brasileiro. A Nação Tupi-Guarani foi a que mais enalteceu seu nome, mas é possível que sua origem divina seja muito mais antiga.
Sua sabedoria e seus poderes se tornaram lendários, o que a fez ser adorada como uma Deusa viva na Terra. Seu nome era Ticê, mas ficou mais conhecida como “A Feiticeira Sem Medo”!
Suas habilidades eram plenas, sendo tão boa guerreira quanto feiticeira. Percorreu terras e nações, destruindo seus inimigos e auxiliando seus aliados. Senhora das profecias e da comunicação entre os mundos, usava seus poderes para guiar seu povo em como e onde plantar, onde deveriam se estabelecer, quem deveriam atacar.
Ticê dizia ser guiada dia e noite pelos seus guias espirituais, que eram seus ancestrais, mas também lia as estrelas, conversava com os aninais e as plantas, entendia os ciclos e previa as mudanças climáticas. Não havia nada, aparentemente, que ela não pudesse fazer.
O medo que seus inimigos tinham dela, era alimentado cada vez mais pelas histórias contadas por aqueles que eram conquistados. Diziam que sua crueldade não tinha limites e que nada e nem ninguém conseguia pará-la.
Sim, seus poderes eram sublimes e notórios, mas foi por um deles que ela ficou mais conhecida. Ticê podia controlar as emoções mais vis das pessoas. Todos que moravam nas redondezas de onde ela estava a procuravam por ajuda, pela cura de seus males, para se libertarem de seus sofrimentos, de seus vícios e das maldades que assolavam seus corações.
Para seus inimigos, no entanto, ela fazia esses sentimentos despertarem. Não, ao contrário do que diziam ela nunca criou sentimentos no coração de ninguém, ela fazia aflorar o que já estava lá. Os povos inimigos não eram mortos só pelas suas flechas, pois quando chegavam eles já tinham destruídos a si próprios, devido a inveja e a maldade liberada em seus corações.
Ticê parecia estar acima da possibilidade de se entregar a qualquer homem, pois ela própria estava muito além de todos aqueles que com os quais ela tinha se encontrado. Mas um dia isso mudou e ela conheceu aquele com o qual iria compartilhar o resto de sua eternidade.
Ela estava tomando banho em um rio, quando sentiu o aproximar de uma presença já conhecida, um poder que já havia arrebatado seu coração. Era Anhangá, o Veado Branco, o Deus Chifrudo Caçador, o Deus das Matas no qual ela reconhecia a sí própria e aos seus desejos mais profundos.
Ela nunca tinha visto ele muito bem, pois sabia que se olhasse em seus olhos flamejantes, enlouqueceria e se perderia para sempre. E ele, sabendo disso, respeitava a distância necessária até que sua amada estivesse preparada.
Ticê dedicou sua vida a desenvolver seus poderes ao ponto de conseguir olhar seu amado e esse dia havia finalmente chego. Naquele dia, naquele rio onde ela se banhava, finalmente ela sabia o que fazer pois seus guias espirituais a ensinaram e Anhangá, sentindo isso, se aproximou entrando nas águas. Usando seu poder desenvolvido Ticê invocou os poderes das águas, que protegeram seus olhos para que finalmente ela e ele pudessem se olhar e se entregar um ao outro.
Anhangá carregou sua amada em seus braços para o fundo do vale em que estava localizado seu reino e ela se tornou a Rainha do Submundo junto a ele. Dizem que a entrada do seu reino estava localizada no fundo do Rio das Almas, caminho sagrado pelo qual os espíritos dos mortos eram encaminhados ao submundo. Esse rio ficou conhecido por Anhangabaú, localizado na região onde foi fundada a cidade de São Paulo, no vale que ainda hoje é chamado pelo mesmo nome do rio.
Alguns acreditam que as maiores catástrofes que ocorreram na cidade de São Paulo, foi justamente na região do Vale do Anhangabaú, pois Anhangá e Ticê estariam castigando os invasores que desrespeitaram e conspurcaram a entrada do seu reino. Eu, particularmente, não acredito que seja uma ação direta desse casal divino, mas sim das almas desencarnadas, que acabaram se perdendo e se revoltando contra os responsáveis. Muitos ainda estão por lá, perdidos a séculos, revoltados não por obra de Anhangá e Ticê, mas sim por consequência do desrespeito e da crueldade dos invasores.
O sangue dos nativos foi derramado nessa terra e seus espíritos buscaram pelo Rio de Anhangá e Ticê, mas o que encontraram foi a podridão dos invasores. Então não, não são Anhangá e Ticê os demônios da maldade e da inveja, mas sim aqueles que invadiram essa terra.
Foram os invasores que tiveram inveja de tamanha riqueza cultural e de recursos que aqui existiam e com pura maldade e crueldade criaram suas próprias histórias, destruindo as histórias daqueles que são os originários dessa nação.
Ticê é a Deusa da Bruxaria, Rainha do Submundo, Senhora da Magia e das Profecias, ela também controla os portais entre os mundos e permite a comunicação entre os reinos e seres.
Em Ticê, vejo Hécate, vejo Perséfone, vejo Lilith, vejo Freya, vejo Oxum, vejo as Iyamís, vejo Hell, vejo todas essas grandes Deusas que são exemplos vivos do poder do Feminino Sagrado, do feminino não submisso, que coloca medo nos homens fracos e desconexos do seu próprio sagrado. Senhoras dos espíritos, através das quais a magia flui e a criação e a destruição se tornam parte do eterno ciclo da vida e da morte.
A eterna e profunda Deusa Ticê ensina a não termos medo do nosso destino e a buscarmos nos preparar para que possamos vive-lo. Ela nos ajuda a encararmos nossas maiores trevas e a encontrarmos meios para transformá-las em poder pessoal.
Ticê nos ensina a honrar e se conectar aos nossos ancestrais, que são nossas raízes do submundo através das quais recebemos nosso alimento espiritual que nos ajudam a nos tornarmos quem somos.
Fonte interessante: xapuri.info

Um comentário:

Érica disse...

Eu faço parte do GESA e esse artigo foi revelador para mim. Estou encantada com as novas descobertas.