14 de março de 2021
8 de março de 2021
AS VÖLVAS: feiticeiras, xamãs e sacerdotisas nórdicas
Os Völvas, também chamadas de seidhkonas, foram um grupo dos mais importantes da religiosidade nórdica antiga, mas, embora possuamos escassos registros históricos, o que temos expressa muito o poder e força dessas personagens.
Eram domínios das völvas a
prática do seidr, forma xamânica de prática de magia, que possuía diferentes
nuances, tais como, o transe e as jornadas espirituais a outros mundos e
dimensões, com ou sem o uso de entógenos, a metamorfose, a alteração da
realidade – incluindo do clima, tão duro e fundamental para a sobrevivência dos
povos do norte - , além de um dos aspectos mais famosos, as profecias. Freyja e
as Nornes são deusas que guardam uma relação muito forte com as völvas.
Freyja, deusa vanir, é
considerada por muitos historiadores – podemos citar Snorri, sobre quem se
atribui a respinsabilidade pelo Edda - , como a Grande Senhora do Seidr, sendo
a responsável por ensinar essa prática espiritual para os aesir. Aliás, foi sob
o disfarce de uma bruxa chamada Heidhr (A Brilhante), que Freyja ensinou o
seidr para Odin.
Sobre as Nornes, Mirellla Faur,
reflete: “É possível que essas mulheres na realidade fossem völvas ou valas
(videntes), que desempenhavam as mesmas funções atribuídas às Nornes, usando
seus dons proféticos, aceitos e honrados em questionamentos.”[1]
Outro registro interessante, que
conecta as völvas com as Nornes e também com Freyja, encontramos no livro
Deuses e Mitos do Norte da Europa, da H. R. Elliz Davidson, em que ela traz
registros históricos de que as völvas, de tempos em tempos, viajavam em
charretes pelas fazenda, para abençoar mulheres grávidas e crianças. Davidson
sugere que os registros de tais práticas demonstram a participação efetiva da
völva na sociedade nórdica como uma espécie de representante dessas deusas (e
também de Frigga), posto que eram chamadas para dar essas bênçãos e dons aos
que iam nascer. A autora defende a “ligação com o culto muito popular às Mães
emm tempos remotos, o apelo às divindades femininas cuja bênção sobre os
recém-nascidos assegurava felicidade na vida”.
Tanto sobre Freyja, como sobre as
Nornes e suas relações profundas com as völvas e o seidr, pouco temos de
concreto, já que os registros dessa tradição religiosa foram transmitidos ou
alterados por historiadores não pagãos. No entanto, como dissemos, o pouco que
temos, é suficiente para nos mostrar o quão grandiosas eram essas mulheres e
essas deusas.
Talvez o exemplo mais famoso da
profecia de uma völva seja encontrado no Völuspá. Aliás, o próprio nome do
poema tem relação com as völvas. Völuspá significa algo como “a profecia da
grande völva”. Para termos ideia da relevância disso, o poema conta a história
da criação do mundo até seu fim no Ragnarök – “O Crepúsculo dos Deuses” – , e conta
a história de uma völva que fala com Odin.
Bruxas, sacerdotisas, profetisas,
as völvas, geralmente são descritas como mulheres mais velhas e cujas vidas
eram devotas às práticas espirituais. Portanto, eram normalmente reclusas,
sendo solicitadas em situações de crise, momentos em que eram sempre
acompanhadas e amparadas por mulheres mais jovens (presumimos aprendizes).
Prática comum entre povos antigos
de diversos lugares no mundo, era o sepultamento com objetos importantes do
morto, quando vivo. Especialmente em âmbito religioso, sacerdotes e
sacerdotisas, em muitas religiosidades, eram enterrados com seus pertences sagrados.
E foi exatamente por essas práticas, que acabamos descobrindo alguns detalhes a
mais da vida dessas bruxas sacerdotisas. Relíquias sacerdotais foram
encontradas em restos mortais de duas mulheres idosas, no barco de Oseberg, barco
nórdico antigo, encontrado enterrado em uma zona rural da Noruega, hoje em
exposição no Museu dos Barcos Vikings, em Oslo.
Dentre esses objetos, encontraram
uma vara. E isso foi muito importante, pois a palavra “völva” significa algo
como “aquela que possui a vara”. A vara, a varinha de poder, o cetro, também
pode ser o cajado para a velha caminhar... e ou enfeitiçar, e ou viajar, já que
constataram a presença de plantas psicoativas nas varas.
Sabemos que os völvas usavam uma
variedade de rituais, como canções e conjurações e, durante a prática do seidr,
freqüentemente, caíam em transe para encontrar as respostas para as perguntas
que haviam sido feitas. Outra maneira de realizar as predições era por meio de
tigelas escuras e água, arte que provavelmente nasceu da leitura oracular em
lagos e outras concentrações de águas.
Segundo H.R. Ellis Davidson, “os
elementos essencias para essa prática de feitiçaria eram a armação de uma
plataforma ou assento elevado sobre o qual o praticante líder se sentava, a
entoação de encantamentos, e o estado de êxtase no qual o líder entrava. Esse
líder, geralmente era uma mulher, chamada völva. Às vezes, a völva era apoiada
por uma grande companhia, que atuava como coro e fornecia música. No fim da
cerimônia, a realizadora do seidr podia responder às perguntas que lhe eram
feitas pelos presentes, e entendemos que recebia as informações enquanto estava
em um estado de transe. “[2]
Fica claro, também no livro de
Davidson, que as viagens xamânicas realizadas pelas völvas envolviam percorrer
os mundos, através de respostas que essas mulheres traziam ao povo. Há relatos
que corroboram a ideia de que as vestimentas delas guardam relação com essas
viagens; as peles dos animais que usavam não eram apenas para proteger do frio,
mas indicavam em que animais elas se metamorfoseavam para caminhar entre os
mundos. Tanto isso é verdade, que na Saga de Erik, O Vermelho, encontramos
detalhes muito preciosos sobre as vestes de uma völva chamada Thorbjörg
Lítilvölva, nome que significaria algo como “pequena völva”. Na saga, Thorbjörg,
feiticeira islandesa, é solicitada para ir a fazendas predizer o futuro e
ajudar nos tempos difíceis de inverno. Existe uma linda imagem dessa völva no
Saga Museum, Museu da memória das sagas escandinavas, na Groenlândia.
O caráter metamorfo do seidr
praticado pelas völvas também pode ter relação com a descrição de que Freyja
viajava em uma charrete puxada por gatos. Nós, Elfo e eu, jamais vamos esquecer
uma experiência muito forte que tivemos com essa questão da metamorfose quando
comungamos pela primeira vez com uma planta de poder. Eu sempre tive uma
relação muito forte com gatos... e a primeira experiência que tive com uma
planta de poder foi algo que só consegui descrever como me transformar ou estar
dentro de um gato e eu conseguia ver cenas através dos olhos desse gato que, ao
mesmo tempo, era eu e no qual eu me encontrava. Obviamente, logo depois, me
lembrei da minha forte relação com Freyja, não só pelas minhas raízes
ancestrais biológicas, mas muito pela ancestralidade espiritual que sinto com
essa Deusa amada.
A völvas eram responsáveis pelas
bênçãos e cura, pelo alento ou o aviso sobre o futuro. E este pequeno texto é
uma forma singela de honrar essas incríveis mulheres, que a história não
honrou.
Beijos,
Lua Serena
Fontes:
Deuses e Mitos do Norte da
Europa, H. R. Ellis Davidson
Mitos Nórdicos, Mirella Faur
Ragnarök, Mirella Faur
7 de março de 2021
TITUBA: a bruxa que era muito maior que Salem
Tituba Indian (Tituba Índia) era
o nome pelo qual era conhecida, porque ela parece ter sido casada com um homem
escravizado junto dela, em Barbados; Seu nome era John Indian (João Índio). No
entanto, há registros de que Tituba negava ser casada com ele.
Como mulher escravizada por
Samuel Parris, Tituba cuidava da casa, das crianças, dos animais, dentre muitas
tarefas. Sabemos que, ela foi a primeira pessoa a ser interrogada por ocasião
das investigações sobre bruxaria, em 1692. Os registros mostram uma história de
mentiras, histeria e superstição. E a historiografia não mostra, escancara, a
face do preconceito e racismo. Vamos lá...
Pelos registros, sabemos que a
filha de Parris e outras amigas começaram a adoecer, sem uma razão aparente.
Bem, pelo menos não que o médico da família pudesse diagnosticar. Então, ele
alegou que, sem saber a causa do adoecimento, elas só podiam estar sob o
feitiço de alguma bruxa. Naquela altura, Salem (e não só Salem) já era um
enorme celeiro de superstições e a sanha de perseguição a bruxas era lugar
comum. Tanto é que, segundo registros históricos, foi uma vizinha dos Parris,
Mary Sibley, que teria ensinado Tituba a fazer um “bolo de bruxa”, uma espécie
de bolo feito com a urina das meninas que, quando dado a um cachorro, esse
revelaria quem era a bruxa. Mary Sibley não fora condenada a nada, exceto a um
afastamento temporário da congregação, já que era uma figura importante daquela
sociedade, além, obviamente, de ser uma pessoa branca.
Já Tituba...
Tituba foi presa e interrogada
não só por esse fato, mas também por ter sido acusada por Betty Parris e
Abigail Williams que, à altura, estavam apenas começando o enorme trabalho de
manipulação e mentiras que culminou na prisão e morte de inúmeras pessoas. As
três primeiras pessoas acusadas por bruxaria foram três mulheres, claro, que
não se encaixavam nos moldes puritanos da Vila de Salem. Uma delas, por óbvio,
foi Tituba, que era conhecida pelas histórias de sua terra longínqua e, segundo
registros, ela seria conhecida por utilizar plantas para cura e outros
objetivos, tendo, inclusive, muitas vezes, tratado as crianças da Vila,
inclusive as de Parris, com seus remédios naturais. É claro que isso foi usado
como prova de que Tituba era uma bruxa, na concepção diabólica criada à época.
Mas não foi só isso.
Existem dúvidas sobre a etnia de
Tituba, não sabendo se ela seria nativo americana, se seria africana, se seria
mestiça. E isso é um ponto importante em toda a história de Tituba. Ao analisar
uma história, é bom sempre atentarmos ao que não é dito, porque é exatamente
naquilo que não é dito que muita verdade pode ser encontrada.
É o que temos.
E, embora a gente deseje muito
mais, é suficiente para compreendermos a força, a inteligência de Tituba. Como
uma mulher escravizada não branca, portanto, sem recursos, sem proteção,
conseguiu sair viva nessa circunstância? Foi a magia de Tituba que a salvou?
Definitivamente sim. Tituba é definitivamente uma bruxa e devemos honrá-la em
nossos festivais dos mortos, como uma grande ancestral de todas as bruxas. Tituba
é uma bruxa por que não só de feitiços se vive. Ser bruxa é sobre ser
resistência, é sobre ser forte. E ser uma bruxa não branca é, além de tudo
isso, sobre ser sobrevivente.
As imagens que vocês estão vendo,
em desenho, são do século XIX, feitas por John W. Ehninger, que retratou Tituba
com traços que me lembram muito os nativos norte americanos. Ehninger talvez tenha
sido influenciado pela presença dos povos que viviam em Salem, à época de
Tituba. É sabido que os colonos estavam em guerra contra os indígenas da região,
especialmente as etnias Wampanoag, Nipmuck, Pocumtuck e Narragansett. Segundo
avaliação de Sherri V. Cummings, em seu artigo Indian, Mixed, or African: The
Metamorphosis of Tituba, Woman, Slave and Witch of Salem — A Historiographical
Examination, a falta de interesse em registrar a etnia de Tituba é clara e,
infelizmente, lugar comum na época, por isso, é possível que ela tenha sido uma
pessoa mestiça. Acrescento que ela pode ter sido uma mulher com traços muitos
familiares para nós, já que temos uma mistura muito comum de muitos povos.
Olhar para nós mesmos é olhar a história de oprimidos e opressores que se
mesclam em nosso DNA. Sim, somos a soma de muitas histórias de oprimidos e
opressores. Temos todos eles dentro de nós.
Uma dica muito bonita de leitura,
que traz essa reflexão, já que apresenta Tituba como tendo nascida do estupro
de um oficial inglês sofrido por sua mãe, africana, é o romance histórico “Eu,
Tituba, de Maryse Condé”. O livro é narrado pela própria protagonista, e mescla
elementos históricos e ficcionais, num recontar maravilhoso, que nos apresenta
Tituba em muitas épocas de sua vida, proporcionando um sentido de
representatividade muito importante. Recomendo.
Lua Serena