14 de março de 2021

Ticê: a feiticeira sem medo





Nemarangatuete! Orému camiarú!

(Seja digna! Feitiço nosso!)

Encontrei essa saudação em uma das poucas fontes sobre Ticê, em um artigo sobre sagrado feminino indígena da etnia Xapuri, no site cujo link segue ao final do texto. 
Quando sentei para escrever sobre Ticê, me deparei com tristeza, porém, infelizmente, sem espanto do quão pouco temos sobre ela (e o que temos é mais do mesmo). Um misto de revolta e tristeza me tomou de assalto com a ausência de registros... Ticê, como muitas deusas, seres e espíritos femininos da terra que hoje chamamos de Brasil, foi praticamente aniquilada da nossa história. Vemos aqui a força da mão do patriarcado e da colonização que ou deturpou ou dizimou muitas figuras femininas de nossa história original. Se temos pouco de deuses e espíritos dos povos donos desta terra, temos menos ainda de deusas e espíritos femininos... ainda mais quando os raios de atuação dessa deusa são a magia, o conhecimento das plantas que, tenho certeza absoluta, não eram apenas as venenosas e mortais, já que encontramos, no decorrer da história da humanidade a mulher como portadora de saberes ancestrais de ervas, tanto as que curam, quanto as que matam, dentre outros aspectos ditos “sombrios”. Então, percebo que ao encontrarmos registros de que ela é uma feiticeira guerreira, conhecedora de venenos, só me faz ter mais certeza de que Ticê, junto de outras grandes deusas feiticeiras, curandeiras e guerreiras, sem dúvida alguma, é parte do Espírito Ancestral de todas as erveiras, parteiras e curandeiras da terra que hoje chamamos Brasil. E se hoje conhecemos algum chá que a avó ou avô aprendeu com alguém que aprendeu com alguém e aprendeu com alguém, devemos a Ticê, a feiticeira sem medo e outras tantas feiticeiras desta terra.
Tentaram apagar Ticê, não conseguiram. Tentaram demonizar Ticê, não conseguiram. Ticê vive em cada mulher e cada homem que nasceu nesta terra, cada mulher e cada homem que bebeu um chá de ervas indicado por alguém. E acima de tudo isso Ticê vive em cada mulher indígena desta terra! Porque Ticê é uma feiticeira guerreira... porque todas as mulheres indígenas deste país são Ticê em força, em magia, em beleza e em guerra. E não adianta... Podem tentar apagar, dizimar, destruir, deturpar... Essa força é a própria força da mata, da Terra, do profundo da Terra, reino sagrado da feiticeira sem medo. 
Sim, tentaram destruir Ticê, mas a sua força e a sua magia são maiores. E o pouco que sabemos dela nos dá uma ideia de seu imenso poder. 
Salve, Sagrada Ticê, feiticeira sem medo! 
Que seu poder e magia habite nossos corações e nos proteja e empodere. E sejam todas as mulheres indígenas deste país lembradas e honradas. 
Eu me sentei para escrever, mas só pude desabafar sobre a ausência de mitos, de histórias, de fontes... Então, me lembrei sobre quem eu queria escrever: sobre uma deusa indígena da magia, do submundo, guerreira, que conhece plantas venenosas, portanto, senhora da morte. E isso me fez lembrar Morrigan, a grande feiticeira guerreira celta também demonizada. 
Isso me fez lembrar das anciãs Guarani Kaiowá, da aldeia Taquaperi, que foram torturadas por pastores evangélicos no Mato Grosso do Sul, acusadas de bruxaria, em 2019.
Isso me fez lembrar da mulher indígena de 29 anos, espancada e acusada de bruxaria, na aldeia Amambaí, também no Mato Grosso do Sul. 
Isso me fez lembrar de um pseudo jornalista, nas eleições de 2018, numa rádio hedionda, criticando a candidatura do Guilherme Boulos. Ele usou o fato da vice do candidato ser indígena como se isso fosse algo muito ruim ou motivo de chacota. Ele comentou com voz de nojo “Uma indígena como vice?! Uma indígena?!” Ninguém disse absolutamente nada. Eu não li posts militantes de internet. Ninguém fez uma campanha contra a fala dele, ninguém foi às ruas, ninguém fez textão... passou quase como se não tivesse existido... E, para mim, o que era claro ficou cristalino: para ele e para tantos, ela não existe, ela não pode existir! Para ele e para tantos, Sônias Guajajaras são absolutamente nada, tão insignificantes que é possível falar na rádio o que jamais se falaria de uma mulher branca ou negra, porque haveria comoção e revolta. Mas, pela indígena... ninguém falou nada.
Então, sentar aqui para escrever sobre Ticê me trouxe uma grande tristeza e revolta. Eu não encontrei registros dela... mas encontrei muitos registros de violência contra indígenas. E eu vou deixar essa revolta aqui... como um registro no vazio de informações sobre essa deusa maravilhosa e no oceano de registros de agressões. Reflitam sobre isso e sobre as agressões não registradas também... E abaixo, deixo com você um texto belíssimo que meu amor, Elfo, escreveu. Espero que gostem. 
Quem dá rosto à Ticê é a Mari, a primeira mulher a me falar sobre essa deusa. Ela, minha filha espiritual, foi quem me apresentou para essa divina presença. E eu sou imensamente grata por isso. Não tenho quaisquer registros de imagem de Ticê, apenas desenhos bonitos, porém, infantilizados... então, eu queria colocar a imagem de grandes mulheres indígenas desse lugar que chamamos Brasil, mas não teria como usar a imagem delas, sem prévia autorização. Então, cito seus nomes, para que vocês busquem saber sobre elas. E se tiverem outros nomes, coloquem nos comentários: Fernanda Kaingang, Daiara Figueroa Yé´pá Mahsã, Sônia Guajajara, Ana Roberta Uglõ Patté, Katu Mirim, Joênia Wapichana Aline Rochedo Pachamama, Ara Mirim Sonia Barbosa, Ará poty mirim Rosângela Barbosa, Azelene Kaingang, Célia Xakriabá, Djuena Tikuna, Francisca dos Anjos, Iracema Rã-Nga Nascimento, Jozileia Daniza Kaingang, Kerexu Yxapyry Eunice Antunes, Kaiulu Rodarte Kamaiurá, Márcia Mura, Maria Eva Canoé, Maria Helena Gavião, Laura Parintintin, Mariane Chaves, Mikelly Priprá, Nanjá Schirlei da Rocha, Nara Baré, Pará Mirim Claúdia Benite, Pará Márcia Macena, Pietra Dolamita Kauwá Apurinã, Renata Machado Tupinambá, Tsitsina Xavante, Tuire Kapran-Krere, Valdelice Veron, Walderes Xokleng, Watatakalu Yawalapiti.
Era uma vez a maior entre todas as bruxas que já pisaram nas terras de Pindorama, líder amada e temida que expandiu seu domínio para além dos limites do seu povo e ganhou renome em todo litoral brasileiro. A Nação Tupi-Guarani foi a que mais enalteceu seu nome, mas é possível que sua origem divina seja muito mais antiga.
Sua sabedoria e seus poderes se tornaram lendários, o que a fez ser adorada como uma Deusa viva na Terra. Seu nome era Ticê, mas ficou mais conhecida como “A Feiticeira Sem Medo”!
Suas habilidades eram plenas, sendo tão boa guerreira quanto feiticeira. Percorreu terras e nações, destruindo seus inimigos e auxiliando seus aliados. Senhora das profecias e da comunicação entre os mundos, usava seus poderes para guiar seu povo em como e onde plantar, onde deveriam se estabelecer, quem deveriam atacar.
Ticê dizia ser guiada dia e noite pelos seus guias espirituais, que eram seus ancestrais, mas também lia as estrelas, conversava com os aninais e as plantas, entendia os ciclos e previa as mudanças climáticas. Não havia nada, aparentemente, que ela não pudesse fazer.
O medo que seus inimigos tinham dela, era alimentado cada vez mais pelas histórias contadas por aqueles que eram conquistados. Diziam que sua crueldade não tinha limites e que nada e nem ninguém conseguia pará-la.
Sim, seus poderes eram sublimes e notórios, mas foi por um deles que ela ficou mais conhecida. Ticê podia controlar as emoções mais vis das pessoas. Todos que moravam nas redondezas de onde ela estava a procuravam por ajuda, pela cura de seus males, para se libertarem de seus sofrimentos, de seus vícios e das maldades que assolavam seus corações.
Para seus inimigos, no entanto, ela fazia esses sentimentos despertarem. Não, ao contrário do que diziam ela nunca criou sentimentos no coração de ninguém, ela fazia aflorar o que já estava lá. Os povos inimigos não eram mortos só pelas suas flechas, pois quando chegavam eles já tinham destruídos a si próprios, devido a inveja e a maldade liberada em seus corações.
Ticê parecia estar acima da possibilidade de se entregar a qualquer homem, pois ela própria estava muito além de todos aqueles que com os quais ela tinha se encontrado. Mas um dia isso mudou e ela conheceu aquele com o qual iria compartilhar o resto de sua eternidade.
Ela estava tomando banho em um rio, quando sentiu o aproximar de uma presença já conhecida, um poder que já havia arrebatado seu coração. Era Anhangá, o Veado Branco, o Deus Chifrudo Caçador, o Deus das Matas no qual ela reconhecia a sí própria e aos seus desejos mais profundos.
Ela nunca tinha visto ele muito bem, pois sabia que se olhasse em seus olhos flamejantes, enlouqueceria e se perderia para sempre. E ele, sabendo disso, respeitava a distância necessária até que sua amada estivesse preparada.
Ticê dedicou sua vida a desenvolver seus poderes ao ponto de conseguir olhar seu amado e esse dia havia finalmente chego. Naquele dia, naquele rio onde ela se banhava, finalmente ela sabia o que fazer pois seus guias espirituais a ensinaram e Anhangá, sentindo isso, se aproximou entrando nas águas. Usando seu poder desenvolvido Ticê invocou os poderes das águas, que protegeram seus olhos para que finalmente ela e ele pudessem se olhar e se entregar um ao outro.
Anhangá carregou sua amada em seus braços para o fundo do vale em que estava localizado seu reino e ela se tornou a Rainha do Submundo junto a ele. Dizem que a entrada do seu reino estava localizada no fundo do Rio das Almas, caminho sagrado pelo qual os espíritos dos mortos eram encaminhados ao submundo. Esse rio ficou conhecido por Anhangabaú, localizado na região onde foi fundada a cidade de São Paulo, no vale que ainda hoje é chamado pelo mesmo nome do rio.
Alguns acreditam que as maiores catástrofes que ocorreram na cidade de São Paulo, foi justamente na região do Vale do Anhangabaú, pois Anhangá e Ticê estariam castigando os invasores que desrespeitaram e conspurcaram a entrada do seu reino. Eu, particularmente, não acredito que seja uma ação direta desse casal divino, mas sim das almas desencarnadas, que acabaram se perdendo e se revoltando contra os responsáveis. Muitos ainda estão por lá, perdidos a séculos, revoltados não por obra de Anhangá e Ticê, mas sim por consequência do desrespeito e da crueldade dos invasores.
O sangue dos nativos foi derramado nessa terra e seus espíritos buscaram pelo Rio de Anhangá e Ticê, mas o que encontraram foi a podridão dos invasores. Então não, não são Anhangá e Ticê os demônios da maldade e da inveja, mas sim aqueles que invadiram essa terra.
Foram os invasores que tiveram inveja de tamanha riqueza cultural e de recursos que aqui existiam e com pura maldade e crueldade criaram suas próprias histórias, destruindo as histórias daqueles que são os originários dessa nação.
Ticê é a Deusa da Bruxaria, Rainha do Submundo, Senhora da Magia e das Profecias, ela também controla os portais entre os mundos e permite a comunicação entre os reinos e seres.
Em Ticê, vejo Hécate, vejo Perséfone, vejo Lilith, vejo Freya, vejo Oxum, vejo as Iyamís, vejo Hell, vejo todas essas grandes Deusas que são exemplos vivos do poder do Feminino Sagrado, do feminino não submisso, que coloca medo nos homens fracos e desconexos do seu próprio sagrado. Senhoras dos espíritos, através das quais a magia flui e a criação e a destruição se tornam parte do eterno ciclo da vida e da morte.
A eterna e profunda Deusa Ticê ensina a não termos medo do nosso destino e a buscarmos nos preparar para que possamos vive-lo. Ela nos ajuda a encararmos nossas maiores trevas e a encontrarmos meios para transformá-las em poder pessoal.
Ticê nos ensina a honrar e se conectar aos nossos ancestrais, que são nossas raízes do submundo através das quais recebemos nosso alimento espiritual que nos ajudam a nos tornarmos quem somos.
Fonte interessante: xapuri.info

8 de março de 2021

AS VÖLVAS: feiticeiras, xamãs e sacerdotisas nórdicas

 

Os Völvas, também chamadas de seidhkonas, foram um grupo dos mais importantes da religiosidade nórdica antiga, mas, embora possuamos escassos registros históricos, o que temos expressa muito o poder e força dessas personagens.

Eram domínios das völvas a prática do seidr, forma xamânica de prática de magia, que possuía diferentes nuances, tais como, o transe e as jornadas espirituais a outros mundos e dimensões, com ou sem o uso de entógenos, a metamorfose, a alteração da realidade – incluindo do clima, tão duro e fundamental para a sobrevivência dos povos do norte - , além de um dos aspectos mais famosos, as profecias. Freyja e as Nornes são deusas que guardam uma relação muito forte com as völvas.

Freyja, deusa vanir, é considerada por muitos historiadores – podemos citar Snorri, sobre quem se atribui a respinsabilidade pelo Edda - , como a Grande Senhora do Seidr, sendo a responsável por ensinar essa prática espiritual para os aesir. Aliás, foi sob o disfarce de uma bruxa chamada Heidhr (A Brilhante), que Freyja ensinou o seidr para Odin.

Sobre as Nornes, Mirellla Faur, reflete: “É possível que essas mulheres na realidade fossem völvas ou valas (videntes), que desempenhavam as mesmas funções atribuídas às Nornes, usando seus dons proféticos, aceitos e honrados em questionamentos.”[1]

Outro registro interessante, que conecta as völvas com as Nornes e também com Freyja, encontramos no livro Deuses e Mitos do Norte da Europa, da H. R. Elliz Davidson, em que ela traz registros históricos de que as völvas, de tempos em tempos, viajavam em charretes pelas fazenda, para abençoar mulheres grávidas e crianças. Davidson sugere que os registros de tais práticas demonstram a participação efetiva da völva na sociedade nórdica como uma espécie de representante dessas deusas (e também de Frigga), posto que eram chamadas para dar essas bênçãos e dons aos que iam nascer. A autora defende a “ligação com o culto muito popular às Mães emm tempos remotos, o apelo às divindades femininas cuja bênção sobre os recém-nascidos assegurava felicidade na vida”.

Tanto sobre Freyja, como sobre as Nornes e suas relações profundas com as völvas e o seidr, pouco temos de concreto, já que os registros dessa tradição religiosa foram transmitidos ou alterados por historiadores não pagãos. No entanto, como dissemos, o pouco que temos, é suficiente para nos mostrar o quão grandiosas eram essas mulheres e essas deusas.

Talvez o exemplo mais famoso da profecia de uma völva seja encontrado no Völuspá. Aliás, o próprio nome do poema tem relação com as völvas. Völuspá significa algo como “a profecia da grande völva”. Para termos ideia da relevância disso, o poema conta a história da criação do mundo até seu fim no Ragnarök – “O Crepúsculo dos Deuses” – , e conta a história de uma völva que fala com Odin.

Bruxas, sacerdotisas, profetisas, as völvas, geralmente são descritas como mulheres mais velhas e cujas vidas eram devotas às práticas espirituais. Portanto, eram normalmente reclusas, sendo solicitadas em situações de crise, momentos em que eram sempre acompanhadas e amparadas por mulheres mais jovens (presumimos aprendizes).

Prática comum entre povos antigos de diversos lugares no mundo, era o sepultamento com objetos importantes do morto, quando vivo. Especialmente em âmbito religioso, sacerdotes e sacerdotisas, em muitas religiosidades, eram enterrados com seus pertences sagrados. E foi exatamente por essas práticas, que acabamos descobrindo alguns detalhes a mais da vida dessas bruxas sacerdotisas. Relíquias sacerdotais foram encontradas em restos mortais de duas mulheres idosas, no barco de Oseberg, barco nórdico antigo, encontrado enterrado em uma zona rural da Noruega, hoje em exposição no Museu dos Barcos Vikings, em Oslo.

Dentre esses objetos, encontraram uma vara. E isso foi muito importante, pois a palavra “völva” significa algo como “aquela que possui a vara”. A vara, a varinha de poder, o cetro, também pode ser o cajado para a velha caminhar... e ou enfeitiçar, e ou viajar, já que constataram a presença de plantas psicoativas nas varas.

Sabemos que os völvas usavam uma variedade de rituais, como canções e conjurações e, durante a prática do seidr, freqüentemente, caíam em transe para encontrar as respostas para as perguntas que haviam sido feitas. Outra maneira de realizar as predições era por meio de tigelas escuras e água, arte que provavelmente nasceu da leitura oracular em lagos e outras concentrações de águas.

Segundo H.R. Ellis Davidson, “os elementos essencias para essa prática de feitiçaria eram a armação de uma plataforma ou assento elevado sobre o qual o praticante líder se sentava, a entoação de encantamentos, e o estado de êxtase no qual o líder entrava. Esse líder, geralmente era uma mulher, chamada völva. Às vezes, a völva era apoiada por uma grande companhia, que atuava como coro e fornecia música. No fim da cerimônia, a realizadora do seidr podia responder às perguntas que lhe eram feitas pelos presentes, e entendemos que recebia as informações enquanto estava em um estado de transe. “[2]

Fica claro, também no livro de Davidson, que as viagens xamânicas realizadas pelas völvas envolviam percorrer os mundos, através de respostas que essas mulheres traziam ao povo. Há relatos que corroboram a ideia de que as vestimentas delas guardam relação com essas viagens; as peles dos animais que usavam não eram apenas para proteger do frio, mas indicavam em que animais elas se metamorfoseavam para caminhar entre os mundos. Tanto isso é verdade, que na Saga de Erik, O Vermelho, encontramos detalhes muito preciosos sobre as vestes de uma völva chamada Thorbjörg Lítilvölva, nome que significaria algo como “pequena völva”. Na saga, Thorbjörg, feiticeira islandesa, é solicitada para ir a fazendas predizer o futuro e ajudar nos tempos difíceis de inverno. Existe uma linda imagem dessa völva no Saga Museum, Museu da memória das sagas escandinavas, na Groenlândia.

O caráter metamorfo do seidr praticado pelas völvas também pode ter relação com a descrição de que Freyja viajava em uma charrete puxada por gatos. Nós, Elfo e eu, jamais vamos esquecer uma experiência muito forte que tivemos com essa questão da metamorfose quando comungamos pela primeira vez com uma planta de poder. Eu sempre tive uma relação muito forte com gatos... e a primeira experiência que tive com uma planta de poder foi algo que só consegui descrever como me transformar ou estar dentro de um gato e eu conseguia ver cenas através dos olhos desse gato que, ao mesmo tempo, era eu e no qual eu me encontrava. Obviamente, logo depois, me lembrei da minha forte relação com Freyja, não só pelas minhas raízes ancestrais biológicas, mas muito pela ancestralidade espiritual que sinto com essa Deusa amada.

A völvas eram responsáveis pelas bênçãos e cura, pelo alento ou o aviso sobre o futuro. E este pequeno texto é uma forma singela de honrar essas incríveis mulheres, que a história não honrou.

Beijos,
Lua Serena

 

Fontes:

Deuses e Mitos do Norte da Europa, H. R. Ellis Davidson

Mitos Nórdicos, Mirella Faur

Ragnarök, Mirella Faur

 

 



[1] FAUR, Mirella. Ragnarök, o crepúsculo dos deuses, editora Cultrix, página 235.

[2] DAVIDSON, Ellis H. R. Deuses e Mitos do Norte da Europa, editora Madras, página 102.

7 de março de 2021

TITUBA: a bruxa que era muito maior que Salem


 A história das bruxas de Salem nunca me atraiu. Talvez por eu saber, desde que tive contato com ela, que se tratava de uma história de mentiras, manipulações e política puritana. Então, sinceramente, eu não gostava. Não por falta de interesse, mas porque me revoltava. Me revolta até hoje, para falar a verdade. Na minha própria contradição, me incomodo com o caráter mercantil que Salem ganhou, capitalizando tudo que é de bruxa, quando o que temos ali é uma história de dor e opressão, mas, ao mesmo tempo, a atmosfera bruxística me encanta e me fascina o bastante para eu vive-la intensamente. Refletindo sobre tudo isso, entendi um pouco do que sinto – mas ainda preciso de mais reflexão, confesso. E foi a bruxa negra, indígena ou mestiça de Salem que, com a sua poderosa magia, me mostrou... E é dela que vamos falar neste texto.

Tituba Indian (Tituba Índia) era o nome pelo qual era conhecida, porque ela parece ter sido casada com um homem escravizado junto dela, em Barbados; Seu nome era John Indian (João Índio). No entanto, há registros de que Tituba negava ser casada com ele.

Como mulher escravizada por Samuel Parris, Tituba cuidava da casa, das crianças, dos animais, dentre muitas tarefas. Sabemos que, ela foi a primeira pessoa a ser interrogada por ocasião das investigações sobre bruxaria, em 1692. Os registros mostram uma história de mentiras, histeria e superstição. E a historiografia não mostra, escancara, a face do preconceito e racismo. Vamos lá...

Pelos registros, sabemos que a filha de Parris e outras amigas começaram a adoecer, sem uma razão aparente. Bem, pelo menos não que o médico da família pudesse diagnosticar. Então, ele alegou que, sem saber a causa do adoecimento, elas só podiam estar sob o feitiço de alguma bruxa. Naquela altura, Salem (e não só Salem) já era um enorme celeiro de superstições e a sanha de perseguição a bruxas era lugar comum. Tanto é que, segundo registros históricos, foi uma vizinha dos Parris, Mary Sibley, que teria ensinado Tituba a fazer um “bolo de bruxa”, uma espécie de bolo feito com a urina das meninas que, quando dado a um cachorro, esse revelaria quem era a bruxa. Mary Sibley não fora condenada a nada, exceto a um afastamento temporário da congregação, já que era uma figura importante daquela sociedade, além, obviamente, de ser uma pessoa branca.

Já Tituba...

Tituba foi presa e interrogada não só por esse fato, mas também por ter sido acusada por Betty Parris e Abigail Williams que, à altura, estavam apenas começando o enorme trabalho de manipulação e mentiras que culminou na prisão e morte de inúmeras pessoas. As três primeiras pessoas acusadas por bruxaria foram três mulheres, claro, que não se encaixavam nos moldes puritanos da Vila de Salem. Uma delas, por óbvio, foi Tituba, que era conhecida pelas histórias de sua terra longínqua e, segundo registros, ela seria conhecida por utilizar plantas para cura e outros objetivos, tendo, inclusive, muitas vezes, tratado as crianças da Vila, inclusive as de Parris, com seus remédios naturais. É claro que isso foi usado como prova de que Tituba era uma bruxa, na concepção diabólica criada à época.

Mas não foi só isso.

Existem dúvidas sobre a etnia de Tituba, não sabendo se ela seria nativo americana, se seria africana, se seria mestiça. E isso é um ponto importante em toda a história de Tituba. Ao analisar uma história, é bom sempre atentarmos ao que não é dito, porque é exatamente naquilo que não é dito que muita verdade pode ser encontrada.

Tituba não foi apenas apagada da história. Sequer houve interesse em registrar sua origem, sua etnia e, à medida em que os anos passavam, que os séculos passavam, ora Tituba era tida como indígena, ora como negra, a depender do contexto histórico. A ausência de um registro sólido sobre a etnia de Tituba é mais uma prova histórica de menosprezo, opressão e dominação de pessoas brancas sobre pessoas negras e indígenas. A invisibilidade de Tituba me parece proposital. Aliás, o desfecho da história dela em Salem corrobora e prova o racismo profundo de quem registrou a história. E digo sem medo de errar, porque notem a força de Tituba, notem a inteligência dessa mulher por ocasião de seu julgamento. Tituba, perspicaz e perceptiva ao movimento de superstição e histeria que ocorria em Salem, ao ser interrogada em julgamento, confessa ser uma bruxa, mas não por que queria ser uma bruxa. Tituba invoca argumentos muito consistentes à mente asquerosa de seus algozes. Ela admite ser bruxa por ser mulher e escravizada. Ora, uma mulher é mais fraca e muito mais facilmente seduzida pelo Diabo! Além disso, ela é uma escrava e está habituada a receber ordens sem questionar! Então, ela só fez o que sabia fazer, sendo uma mulher escrava, ela obedeceu. E foi isso que salvou sua vida, já que, convencidos de que aquele ser fraco e inferior, só poderia sucumbir às artimanhas do Diabo, já que era uma mulher, já que era uma mulher não branca. Tituba permaneceu presa por 15 meses, sem que Parris pagasse para retirá-la da prisão. Então, um dia, ela é comprada por outro homem e nada mais se sabe dela.

É o que temos.

E, embora a gente deseje muito mais, é suficiente para compreendermos a força, a inteligência de Tituba. Como uma mulher escravizada não branca, portanto, sem recursos, sem proteção, conseguiu sair viva nessa circunstância? Foi a magia de Tituba que a salvou? Definitivamente sim. Tituba é definitivamente uma bruxa e devemos honrá-la em nossos festivais dos mortos, como uma grande ancestral de todas as bruxas. Tituba é uma bruxa por que não só de feitiços se vive. Ser bruxa é sobre ser resistência, é sobre ser forte. E ser uma bruxa não branca é, além de tudo isso, sobre ser sobrevivente.

As imagens que vocês estão vendo, em desenho, são do século XIX, feitas por John W. Ehninger, que retratou Tituba com traços que me lembram muito os nativos norte americanos. Ehninger talvez tenha sido influenciado pela presença dos povos que viviam em Salem, à época de Tituba. É sabido que os colonos estavam em guerra contra os indígenas da região, especialmente as etnias Wampanoag, Nipmuck, Pocumtuck e Narragansett. Segundo avaliação de Sherri V. Cummings, em seu artigo Indian, Mixed, or African: The Metamorphosis of Tituba, Woman, Slave and Witch of Salem — A Historiographical Examination, a falta de interesse em registrar a etnia de Tituba é clara e, infelizmente, lugar comum na época, por isso, é possível que ela tenha sido uma pessoa mestiça. Acrescento que ela pode ter sido uma mulher com traços muitos familiares para nós, já que temos uma mistura muito comum de muitos povos. Olhar para nós mesmos é olhar a história de oprimidos e opressores que se mesclam em nosso DNA. Sim, somos a soma de muitas histórias de oprimidos e opressores. Temos todos eles dentro de nós.

Uma dica muito bonita de leitura, que traz essa reflexão, já que apresenta Tituba como tendo nascida do estupro de um oficial inglês sofrido por sua mãe, africana, é o romance histórico “Eu, Tituba, de Maryse Condé”. O livro é narrado pela própria protagonista, e mescla elementos históricos e ficcionais, num recontar maravilhoso, que nos apresenta Tituba em muitas épocas de sua vida, proporcionando um sentido de representatividade muito importante. Recomendo.

 Na minha imaginação, Tituba jovem tem a cara de uma bruxa muito forte e poderosa, de nome Obsidiyana, por isso eu pedi e usei uma imagem dela para a representar Tituba, a verdadeiramente maior bruxa de Salem. Conheçam o trabalho da @obsidiyana, no insta, vocês vão gostar!

 Beijos,

Lua Serena