Queria contar
algumas coisas para quem quiser e tiver ovários ou testículos dispostos para
ler...
Eu sou mulher...
e como mulher, a gente aprende a viver num mundo bem complicado para o pluralismo
feminino. Um mundo bem machista, um mundo reducionista, que valoriza um tipo de
mulher apenas. Vivemos um modelo social que desvaloriza mulheres fora do padrão,
fazendo com que as vozes femininas atípicas, que bradam alto, sejam demonizadas
ou ridicularizadas... exceto se tais vozes fizerem ou tiverem o apoio a modelos
masculinos.
Eu sou uma
mulher e sempre fui muito pobre, morei minha vida quase inteira na periferia de
SP/SP. Sou mais um número na estatística de mães adolescentes de periferia,
meus caros. Engravidei com 16 anos, pari com 17. Com 18 eu já era sozinha
criando meu filho, trabalhando em subempregos, sem carteira assinada, empregos
que exigiam pouca escolaridade. Estudei a vida inteira em escola estadual de
periferia, então, as minhas chances de concorrer a uma vaga em universidade
pública eram nulas.
Nesses muitos
anos, meus caros, além do meu bebê, eu tive três pessoas ao meu lado: meu pai,
minha mãe e minha irmã. Sem eles... não sei o que teria sido de mim.
Nesses anos, o
amor era motivo de tristeza, já que ninguém gosta de apresentar para a família
uma suburbana, recepcionista, mãe solteira, por mais bonitinha que ela seja. Ainda
mais se ela for bocuda, se falar demais ou um pouco mais alto... “Essas são
para comer”, como se diz por aí...
Nesses anos,
amigos, por mais que eu trabalhasse, ganhasse pouco e criasse meu filho com a
ajuda dos meus pais e minha irmã, eu era tachada de puta pelas línguas
hipócritas. Diziam que eu não trabalhava nada, que eu dormia com meus chefes.
E, assim, garantia meu sustento.
A verdade curiosa
é que jamais dormi com chefe algum, em toda a minha vida. Mas se tivesse
dormido, o meio das minhas pernas sempre foi meu mesmo...
Enfim, foram
anos bem difíceis, com luz cortada inúmeras vezes, com pedidos para descer pela
porta da frente de ônibus, com despejos, com brigas familiares por falta de
grana.
Foi duríssimo.
Mas tem uma
coisa que mudou tudo. Com muita dificuldade e lágrimas, mas mudou: eu sou uma
mulher branca e bastante padrãozinho de beleza. Com “cara de bem-nascida”, como
me disseram algumas vezes, com cara de gente fina, porém, sem um tostão no
bolso. Uma grande amiga, que se ler vai se reconhecer nesta parte, brincava
comigo, dizendo que eu abria a carteira com toda pose e tirava uma nota de 1
real – na época das notas de 1 real.
É verdade.
Essa grande
amiga cuja vida foi infinitamente mais dura que a minha, que viveu um
relacionamento abusivo, que teve de se prostituir muitas vezes para ganhar a
vida, foi impossibilitada de terminar a faculdade e teve que se prostituir para
viver. Vinda da Bahia, uma linda mulher negra, poderosa... que muitas, muitas
vezes, me ajudou financeiramente. Não me esqueço.
É... ser branca,
ter cabelos e olhos claros, ser padrão, não me fez ter que trabalhar menos,
não. Não me fez deixar de ter que correr atrás do meu, não.... Porém, com tudo
isso, eu não tive a necessidade de optar pelo trabalho que de fácil não tem
absolutamente nada. Eu tive alguns privilégios sim, meus caros, e eles fizeram
toda a diferença nas minhas escolhas, na minha vida.
Não só por isso,
mas também graças a isso, eu fui conseguindo algumas oportunidades que foram
negadas a tantas outras pessoas. Certa vez, consegui um emprego e depois meus
chefes disseram que eu consegui por causa da minha aparência. Mostraram meu CV
escrito “ok. Gostosa”. Me senti constrangida, para dizer o mínimo.
Mantive-me nesse
emprego por meus méritos, e fui indicada para trabalhar na empresa que comprou
a empresa que me empregou primeiro, por meus méritos. Mas eu entrei por ser
branca e padrão, por não parecer uma mãe solteira da periferia... embora eu
sempre tenha sido.
Eu fiquei com a
vaga de uma moça que era deficiente. Que não ganhou o cargo exatamente por ser
deficiente. Ela tinha muito mais qualificação que eu, porém, tinha também uma
formação deficiente na perna em razão da poliomelite – na época não havia
política de cotas para deficientes em empresas, ninguém falava disso.
Isso me afetou
bastante, ficou em mim como algo a pensar, refletir... mas eu continuava
empregada e podendo criar meu filho. A vida seguiu. Ganhei muitos empregos
mais, muito mais colocações, afinal, eu era magra, branca, padrão, sem nenhuma
deficiência...
Eu tinha uma
irmã, uma grande parceira, alguém que sempre foi das pessoas mais importantes
da minha vida, que já foi para o país de verão, cedo demais... Laura era alta,
uma mulher grande de 1,80 e que pesava mais de cem quilos... Ela teve muita dificuldade
de arrumar empregos, de comprar roupas, de namorar... E como será que foi para
ela ouvir a vida inteira que nós não éramos parecidas. Isso me feria... Mas
certamente a feriu muito mais. Quantas vezes talvez eu a tenha ferido, sem
querer, com alguma fala dura tão peculiar a mim, como irmã mais velha...
Laura tinha um
coração grande, como a pessoa grande que ela foi... a segunda mãe do meu filho.
E tudo o que eu queria era poder fazer pelos filhos dela o que ela fez pelo
meu. Mas nunca vai acontecer. Seu grande coração, um dia, não aguentou mais
estar aqui e simplesmente parou.
Entrei, fiz,
terminei a minha faculdade por que consegui FIES, minha gente. Entrei, fiz e
terminei por que eu tinha pai, mãe e a Laura a olharem meu filho. Sempre tive
um teto – alugado, sim, às vezes moramos de favor... muitas vezes fomos
mandados embora por que atrasamos o aluguel.... mas sempre tive um teto. A
gente dava um jeito. Eu tive com quem contar, por mais difícil que tenha
sido... eu tive minha família do meu lado.
Não foi fácil,
mas eu tive privilégios. Eu nasci numa família padrão, que se manteve unida
diante das intempéries da vida. Tem muita mãe adolescente que não tem isso...
Na rua da casa da minha avó, tinha uma amiga, da mesma idade (crescemos juntas),
mesmo mundo, mas nascida negra, numa família com histórico de uso de drogas,
abusos. Ela hoje tem quatro ou cinco filhos, de pais diferentes. Ela ainda mora
no mesmo lugar, um dos filhos mais velhos (que brincou com meu filho,
inclusive) já foi preso...
Ela é ainda
tachada de várias coisas hoje, enquanto eu – que também fui a mulher para comer
e não para casar, nas bocas malditas – sou a guerreira que se formou e deu
orgulho, exemplo de superação...
Me orgulho de
minha trajetória, sim... Mas existe algo nisso tudo que me faz sempre ver a
imagem da Liz (nome fictício para a minha amiga) e de seus filhos...
Isso sempre
esteve em meu coração, me fazendo pensar. E se eu não tivesse a minha
família... e se eu fosse negra?
Hoje eu sou uma
mulher casada com um grande homem que me ama e ama meu filho, somos formados, pós-graduados,
temos uma empresa, temos casa própria com vista para a serra e portas altas de
vidro que me permitem vê-la, temos carro, nosso filho está fazendo faculdade e
residência em São Paulo, tenho grandes amigos, uma vida próspera. Não é uma
vida de rico, mas é boa, com muito trabalho ainda hoje, mas é boa. Sou grata
demais e trabalho bastante para manter isso, trabalho para dar o meu melhor... por
que houve muito suor para a conquista de tudo isso. Parece ser legal ser nosso
amigo, não é?! Parecemos exemplos de vida...
Mas e se
fôssemos um casal gay? E se ele fosse uma mulher... ou eu fosse um homem?
Toda vez que eu
o abraço, que eu o beijo, toda vez que brinco maliciosamente com ele em público,
fico pensando nos meus amigos gays que não podem viver seus amores em
liberdade, como eu posso.
Quando eu me
casei, meu filho tinha 11 anos... Antes disso, ouvi inúmeras vezes que deveria
ter alguém, que eu deveria arrumar um bom homem para mim e para o meu filho e
me casar. Quando, finalmente, me casei, foi uma alegria geral. Fico me perguntando
se todos ficariam felizes se ele fosse uma mulher... ou se nós fôssemos dois
homens se casando e criando um menino de 11 anos...
Então, eu também
sou muito privilegiada pelo relacionamento heterossexual padrão que tenho, ouço
muitas vezes que somos exemplo e casal. Mas nunca ouvi que meus amigos e amigas
gays, casados, são exemplo de relacionamento. Muito pelo contrário... Eu ouvi
certa vez que algumas pessoas, parentes, que não gostavam de estar em minhas
festas de aniversário por que nelas havia muitos homossexuais... Pois é...
Essas pessoas me
lembraram de outra situação. Eu tive um longo relacionamento com um rapaz,
certa vez. Um homem muito esforçado, muito trabalhador. Muito bonito e negro.
Talvez ele jamais tenha sabido as inúmeras vezes que me perguntaram se eu não
me olhava no espelho, se eu não me dava valor... É... Eu nunca tive coragem de
contar a ele esse tipo de coisa que eu ouvia, pois eu jamais o quis ferir com
esses absurdos.
Enfim,
amiguinhos... são muitas, muitas histórias... e eu poderia contar muitas e
muitas mais... Eu nem falei de religião... que seria um assunto e tanto para
trazer nessas linhas... Mas elas já são
muitas.
E se você chegou
até aqui nesse texto, obrigada por ler parte da minha história de vida. Peço que
você não me veja como uma incrível pessoa, nem talvez como alguém que está
escrevendo esse texto e contando essas coisas para se vangloriar de algo. Se
pareceu isso, devo refazer minhas palavras.
Minha intenção é
dividir... refletir.
Olho para o
passado e me lembro de quem estava lá comigo em todas essas e outras histórias...
Quem sempre esteve comigo de verdade?
Quem me olhou
mais que um pedaço de carne?
Quem me
respeitou como mulher?
De quem eu tirei
a vaga?
Quem eu
ultrapassei, superei pelos meus privilégios?
Quem contribuiu
para que eu fosse quem sou?
Sim, me orgulho
muito de quem sou. Minha vida são minhas escolhas... Então, eu jamais poderia
escolher qualquer caminho que ferisse, que ameaçasse aqueles que comigo
estiveram e que são um comigo, pois sou fruto de um pouco de cada uma dessas
pessoas que citei... e outras tantas.
Eu tenho orgulho
de quem sou, mas nem sempre foi assim. E se hoje é assim, é por que todas essas
pessoas existiram em meu caminho. Nós somos uns os outros, de certo modo. Eu
devo a elas e farei o meu melhor, me esforçando para me corrigir quando errar,
me esforçando ao máximo para fazer deste um lugar melhor.
Por isso, estou
com todos vocês para sempre, se vocês assim me quiserem.
Logo farei
quarenta anos nesse Brasil que se apresenta... e um filme passa pela minha
mente. Reflexões que queria dividir com vocês.
Venha o que
vier, não me calo.
E se você acha
que é mimimi, bobagem... vá com ter com os teus e me deixe aqui com os meus,
com meus mimimis, com minhas bobagens, com meus pensamentos e minhas pessoas...
pois sou e pertenço a tudo isso e elas são e pertencem a mim. Somos um.
E mesmo que haja
um sim, nós estaremos aqui para lembrar que #elejamais !
Beijos,
Lua Serena